domingo, 15 de abril de 2012

Os honestos pagam pelos desonestos

Eu era criança quando fui abordada por um catador de lixo. Estacionou o carrinho de mão pesado em frente à calçada da minha casa e pediu, humildemente, que eu lhe trouxesse um copo d`água. Lembrei da recomendação de não falar com estranhos, mas sempre achei isso esquisito. Como ignorar um ser humano que se dirige a você como se ele fosse invisível?

Raciocinei rapidamente para que pudesse emitir logo uma resposta, mesmo que hesitante, afinal, eu tinha que responder algo a uma pessoa que poderia estar mesmo com muita sede. Eu já tinha senso do perigo. Então, antes de esboçar alguma reação, fiquei imaginando a cena: eu entrando pra buscar água, deixando o portão aberto, porque eu teria vergonha de fechar a porta na cara dele, com receio de mostrar a minha desconfiança e a pessoa se ofender, o cara se aproveitando da minha inocência para entrar na casa, roubá-la, ou ainda fazer algum mal a minha família.

A minha saída foi dizer que água "de beber" estava em falta. Depois, hesitei e passei a me contradizer, alegando que até tinha água, mas que não estava gelada. Ele rebateu dizendo que não tinha problema. Mas eu não arredaria o pé dali. Não diria a ele que minha mãe havia me proibido de falar com estranhos, o que implicaria também na minha impossibilidade de entregar um copo d`água. Eu fiquei falando justificativas incoerentes, até que ele se convenceu de que eu tinha medo. Medo só, porque a maldade de negar água a alguém não poderia haver numa criança.

Foi embora. Desde esse dia, nunca esqueci do meu jeito de negar água a um pobre catador de lixo. Eu me sentia uma pessoa horrível, mas sabia que tinha minhas razões para tal.

Outro dia, eu estava no canteiro central, em frente à parada de ônibus, quando outro catador de lixo, este mais novo e cheio de energia, embora já com claros sinais de cansaço, se dirigiu a mim sem implorar nem nada:

- Moça, tem alguma moeda para ajudar no meu almoço?

Senti algo apertar dentro de mim. Pude ver a imagem do primeiro catador me implorando por um copo d`água. Era uma projeção trêmula de uma cena real e triste, retrato da miséria do nosso país. Novamente, o senso do perigo e a premonição do cara arrancando minha bolsa, enquanto eu estivesse procurando a carteira. Desta vez, estive mais decidida ao dar resposta. Disse prontamente que não! E o catador demonstrou já estar acostumado com esse tipo de resposta. Conformado, retomou os braços do carrinho, tão exaustos quanto os dele, e continuou no seu caminho sem destino.

Ele foi, e eu fiquei me sentindo mais estática do que nunca diante dos sérios problemas da sociedade. Percebi que agora eu já havia negado não só um copo d`água, como também um almoço a quem tinha fome de verdade. Tudo por medo da violência e da insegurança. Quer dizer, poderiam ser pessoas honestas pedindo minha contribuição, mas que tiveram seus pedidos negados por conta da imagem suja projetada pela maioria desonesta.

2 comentários:

Maia disse...

Lindo texto, Elaine! Muito sensível e bem escrito! Mesmo se o mundo te diga Não, espero que você mantenha sua sede de escrita! Saudades, um beijo!

Elaine Pacheco disse...

Obrigada, amigo Maia! Felicidade de encontrá-lo pelo menos aqui. hehe Abraço!