terça-feira, 13 de julho de 2010

Risco Alheio: Saramago

" Na cama ao lado, a que se encostava à parede, o rapazinho dormia também, Fez como eu, pensou a mulher do médico, deu-lhe o lugar mais protegido, bem fraca muralhas seríamos, só uma pedra no meio do caminho, sem outra esperança que a de tropeçar nela o inimigo, inimigo, que inimigo, aqui ninguém nos virá atacar, podíamos ter roubado e assassinado lá fora que não nos viriam prender, nunca aquele que roubou o carro esteve tão seguro da sua liberdade, tão longe estamos do mundo que não tarda que comecemos a não saber quem somos, nem nos lembrámos sequer de dizer-nos como nos chamamos, e para quê, para que iriam servir-nos os nomes, nenhum cão reconhece outro cão, ou se lhe dá a conhecer, pelos nomes que lhes foram postos, é pelo cheiro que identifica e se dá a identificar, nós aqui somos como uma outra raça de cães, conhecemo-nos pelo ladrar, pelo falar, o resto, feições, cor dos olhos, da pele, do cabelo, não conta, é como se não existisse..."

Págs.63-64 [Ensaio Sobre a Cegueira - José Saramago]

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Pai e Mãe e Filho

Olha pra mãe e acha engraçado. Como ela ainda acredita em sorte? Compra toda semana o jogo de cinco prêmios acreditando fielmente que um dia todo o dinheiro investido encontrará o caminho da volta, voltando da mesma nota, só que mais rechonchudo e acrescido de não sei quantos zeros.

Olha pro pai e acha injusto. Como pode ele cair de sono recostado na cadeira desconfortável, depois de domingo a domingo batalhando pra honrar com os impostos? "É, boa noite pra quem fica, amanhã começa tudo de novo!"

O filho sente que hoje os papeis se inverteram,precisa cuidar dos seus pais,mimá-los na medida certa, e , principalmente, ensiná-los a conviver com os novos valores pra não se chocarem tanto: " O mundo está perdido, aonde vamos parar?"

O filho chega à conclusão de que pais são seres bastante carentes e aconselha que se tenha muito cuidado com qualquer palavra dita, especialmente a não dita. Ou terá que ouvir: "Seus ingratos, a gente faz tudo por eles..." O fato é que o filho não tem dúvida, todos os pais são iguais e só mudam de contexto.

Pai e mãe são coisas valiosas no banco sentimental, são extensões dos filhos.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Círculo imperfeito

Tenho a intuição de que todo mundo se sente sozinho, assim como eu, talvez isso explique o incessante desejo de compensar o que falta somando coisas pequenas sem essência.

Sós é como se assistíssemos de camarote algo invisível levar embora aquelas pessoas únicas, de almas bonitas. Sem querer não mais as vemos, ficamos sem notícias.Apenas imaginamos por onde andam, se mudaram seus jeitos, vícios e defeitos, se realmente desapareceram da Terra abduzidos.

Sós, porque é mais confortável ficar inerte, ver o tempo fugir de nosso controle.É mais fácil manter o olhar fixo e deixar que nada ao seu redor interfira na sua órbita caótica particular.

Seria incrível vencer o cansaço pra reviver emoções, fazer ressurgir os encontros, e até os desencontros. Parece que às vezes os sentimentos falecem, nos vemos num deserto ouvindo o som de uma gaita protagonizar o que é triste na melodia.

Seria bom poder desgrudar do centro do círculo desenhado em torno de nós. Um círculo rabiscado com um giz especial, que não apaga com o vento e nem com as tentativas alheias. Essa esfera fica marcando nosso terreno, no qual os velhos amigos não podem mais pisar, são repelidos. Não há nem uma réstia daquele magnetismo de tempos atrás. Esquecemos, a memória vai apagando aquilo que um dia vivemos com tanta intensidade. Os rostos deles vão perdendo os formatos, vão perdendo os detalhes. Sobram apenas lembranças soltas, que misturam-se com outras, ficando confusas.

Quero tentar sair daqui, mas preciso de mais força. Aquela força que desvaneceu quando perdi a fonte da minha luz: as pessoas queridas que ficaram pra trás. Estou apagando sem elas. Vi que, como diz a música, "eu sou o que vocês são". Então sinto que é hora de nos movermos e destruirmos esse círculo imperfeito a nossa volta.