quinta-feira, 17 de julho de 2008


Acordou com o ruído dos ponteiros. Coberta por um lençol de um branco alvo, Carolina conseguiu, finalmente, fixar os grandes olhos negros no despertador. Notou o espaço vazio na cama, onde o marido deveria estar sonhando e ainda produzindo os primeiros estrondos de cada ronco. Era assim que a esposa chamava os roncos do marido sonhador’, uma seqüência de estrondos.

Carolina, então, levantou-se e inspirou profundamente como de costume. Fazia isso para intimidar a preguiça que travava sua mente e corpo em todo despertar. Quando o ar se dispersou em seus pulmões, sentiu de imediato o cheirinho de fósforo queimado acordar sua memória. Adorava aquele cheiro. Doces lembranças da infância. Visualizou de imediato a querida mãe acendendo o palito de fósforo para preparar o seu prato favorito no fogão à lenha.


Carolina sempre teve uma memória inquestionável, recordava do passado recente e distante sem muito esforço, mesmo depois de noites mal dormidas e perseguidas por pesadelos. Então, em um flash mais rápido que a velocidade da luz, saiu do cenário rústico da casa da mãe e transportou-se para quatro horas atrás. Estava esquentando o leite, quando a boca do fogão deixou de fornecer fogo. Tinha que trocar o botijão de gás. “- Ah, não”, detestava isso.O marido ainda não tinha chegado do trabalho. Não pretendia esperá-lo, estava com os olhos pesados, só precisava tomar a sua xícara de leite e, num passo único, lançar- se na cama.


Força. Botijão de gás. Leite morno. Ao caminhar até o quarto sabia que tinha esquecido de algo. A luz acesa? Não. Enfim, não se importou tanto. Uma boa noite de sono era sua prioridade no momento. Agora, aquele cheiro de fósforo não lhe parecia mais agradável. Lembrou tarde demais o que tinha esquecido. O marido acendeu o fósforo e o que se ouviu a seguir foi um estrondo. Se Carolina considerava os roncos do marido estrondos, descobriu em uma situação trágica qual o real sentido da palavra. Gritos de agonia e tentativas vãs de fuga da casa em chamas. Tudo isso porque não tinha feito o teste de vazamento de gás. Atordoada, Carolina tentou destravar a janela do quarto, mas desistiu, queria encontrar o marido pela direção dos gritos de socorro.

Tudo estava em chamas. O vilão alastra-se em pouco tempo. Não deixou que os personagens dessa história trágica pensassem em estratégias para saírem unidos dos fatos inesperados. Carolina encontra o marido coberto por fogo. Odor de carne humana queimando. Tantas noites rezando, tendo como ponto de referência visual o crucifixo no centro da parede. Como isso pode ocorrer com um ser humano? Carolina não conseguia pensar. Olhou para os lados num desespero sufocante. Gritos e pensamentos surdos. Não havia qualquer possibilidade de salvar-se.

O inferno veio de encontro àqueles pobres indivíduos, só não imaginavam que seria tão cedo. Morreram ali, na sala de estar, que se empenharam tanto para decorar. Duas vidas mal desfrutadas falecidas, crepitando.






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