domingo, 16 de junho de 2013

A Clarice quase me convenceu com esta história.

   Só ela mesmo para quase (eu disse quase) me convencer de voltar a comer galinhas. Logo eu, sua leitora que está fazendo aniversário este mês de 1 ano de alimentação "vegana", ou seja, nada de origem animal no prato.
   A Clarice quase me pega com sua poesia, com sua "história de tanto amor". Golpe baixo, viu! Poesia, nesse caso, é golpe baixo mesmo. 
   Para que você entenda melhor o meu lado nessa história toda, copio a crônica da Clarice logo abaixo e, ao final, para não perder o costume, lembro e escrevo sobre alguma coisa do meu passado em família. Um passado ainda muito recente se passando nas minhas lembranças de infância e de adolescência.


   " Era uma vez uma menina que observava tanto as galinhas que lhes conhecia a alma e os anseios íntimos. A galinha é ansiosa, enquanto o galo tem angústia quase humana: falta-lhe um amor verdadeiro naquele seu harém, e ainda mais tem que vigiar a noite toda para não perder a primeira das mais longínquas claridades e cantar o mais sonoro possível. É o seu dever e a sua arte. Voltando às galinhas, a menina possuía duas só dela. Uma se chamava Pedrina e a outra Petronilha.

   Quando a menina achava que uma delas estava doente do fígado, ela cheirava embaixo das asas delas, com uma simplicidade de enfermeira, o que considerava ser o sintoma máximo de doenças, pois o cheiro de galinha viva não é de se brincar. Então pedia um remédio a uma tia. E a tia: “Você não tem coisa nenhuma no fígado”. Então, com a intimidade que tinha com essa tia eleita, explicou-lhe para quem era o remédio. A menina achou de bom alvitre dá-lo tanto a Pedrina quanto a Petronilha para evitar contágios misteriosos. Era quase inútil dar o remédio porque Pedrina e Petronilha continuavam a passar o dia ciscando o chão e comendo porcarias que faziam mal ao fígado. E o cheiro debaixo das asas era aquela morrinha mesmo. Não lhe ocorreu dar um desodorante porque nas Minas Gerais onde o grupo vivia não eram usados assim como não se usavam roupas íntimas de nylon e sim de cambraia. A tia continuava a lhe dar o remédio, um líquido escuro que a menina desconfiava ser água com uns pingos de café — e vinha o inferno de tentar abrir o bico das galinhas para administrar-lhes o que as curaria de serem galinhas. A menina ainda não tinha entendido que os homens não podem ser curados de serem homens e as galinhas de serem galinhas: tanto o homem como a galinha têm misérias e grandeza (a da galinha é a de pôr um ovo branco de forma perfeita) inerentes à própria espécie. A menina morava no campo e não havia farmácia perto para ela consultar.

  Outro inferno de dificuldade era quando a menina achava Pedrina e Petronilha magras debaixo das penas arrepiadas, apesar de comerem o dia inteiro. A menina não entendera que engordá-las seria apressar-lhes um destino na mesa. E recomeçava o trabalho mais difícil: o de abrir-lhes o bico. A menina tornou-se grande conhecedora intuitiva de galinhas naquele imenso quintal das Minas Gerais. E quando cresceu ficou surpresa ao saber que na gíria o termo galinha tinha outra acepção. Sem notar a seriedade cômica que a coisa toda tomava:

— Mas é o galo, que é um nervoso, é quem quer! Elas não fazem nada demais! e é tão rápido que mal se vê! O galo é quem fica procurando amar uma e não consegue!


  Um dia a família resolveu levar a menina para passar o dia na casa de um parente, bem longe de casa. E quando voltou, já não existia aquela que em vida fora Petronilha. Sua tia informou:


— Nós comemos Petronilha.


   A menina era uma criatura de grande capacidade de amar: uma galinha não corresponde ao amor que se lhe dá e no entanto a menina continuava a amá-la sem esperar reciprocidade. Quando soube o que acontecera com Petronilha passou a odiar todo o mundo da casa, menos sua mãe que não gostava de comer galinha e os empregados que comeram carne de vaca ou de boi. O seu pai, então, ela mal conseguiu olhar: era ele quem mais gostava de comer galinha. Sua mãe percebeu tudo e explicou-lhe:


— Quando a gente come bichos, os bichos ficam mais parecidos com a gente, estando assim dentro de nós. Daqui de casa só nós duas é que não temos Petronilha dentro de nós. É uma pena.

  Pedrina, secretamente a preferida da menina, morreu de morte morrida mesmo, pois sempre fora um ente frágil. A menina, ao ver Pedrina tremendo num quintal ardente de sol, embrulhou-a num pano escuro e depois de bem embrulhadinha botou-a em cima daqueles grandes fogões de tijolos das fazendas das minas-gerais. Todos lhe avisaram que estava apressando a morte de Pedrina, mas a menina era obstinada e pôs mesmo Pedrina toda enrolada em cima dos tijolos quentes. Quando na manhã do dia seguinte Pedrina amanheceu dura de tão morta, a menina só então, entre lágrimas intermináveis, se convenceu de que apressara a morte do ser querido.

  Um pouco maiorzinha, a menina teve uma galinha chamada Eponina. O amor por Eponina: dessa vez era um amor mais realista e não romântico; era o amor de quem já sofreu por amor. E quando chegou a vez de Eponina ser comida, a menina não apenas soube como achou que era o destino fatal de quem nascia galinha. As galinhas pareciam ter uma pré-ciência do próprio destino e não aprendiam a amar os donos nem o galo. Uma galinha é sozinha no mundo.

   Mas a menina não esquecera o que sua mãe dissera a respeito de comer bichos amados: comeu Eponina mais do que todo o resto da família, comeu sem fome, mas com um prazer quase físico porque sabia agora que assim Eponina se incorporaria nela e se tornaria mais sua do que em vida. Tinham feito Eponina ao molho pardo. De modo que a menina, num ritual pagão que lhe foi transmitido de corpo a corpo através dos séculos, comeu-lhe a carne e bebeu-lhe o sangue. Nessa refeição tinha ciúmes de quem também comia Eponina. A menina era um ser feito para amar até que se tornou moça e havia os homens."

Em "uma história de tanto amor", p. 69-73



    Lembro-me de quando eu era mocinha. Minha mãe criava galinhas no quintal. Houve um tempo em que ela se apegou com uma das galinhas (uma pena eu não lembrar do nome que minha mãe deu a ela; só sei que era engraçado). 
   Certo dia, lá vem minha mãe com sua galinha preferida apertada num abraço incomum. Pediu que eu corresse e voltasse com a máquina fotográfica. O cenário da foto foi o jardim da nossa casa. Registrei as duas bem juntinhas entre as plantas. Claro que a pobre da galinha estava amedrontada com aquela demonstração de afeto repentina. Minha ligeira impressão era de que a ave estava bolando um plano pra cair fora daquela situação embaraçosa somente para ela. Eu ria muito daquilo. Mas não vi graça nenhuma no dia em que vi, da cozinha, minha mãe lá no quintal se preparando para puxar o pescoço da bichinha.
   Eu nunca entendi de onde minha mãe tirava coragem para tal coisa. Que dó da galinha!. Na época, eu adorava e devorava galinha cozida. Eu engolia até os ossos. Mas daquela galinha eu não me fartei. Eu me recusei. Se eu a comesse, me sentiria uma criminosa. Cúmplice de assassinato. Não demorou muito e eu esqueci o trauma. Tinha voltado a apreciar pratos de galinha cozida com cuscuz. Hoje sou vegetariana. Engraçado. Se não engraçado, no mínimo curioso. 

2 comentários:

Osvaldo disse...

Uma leitura leve e gostosa, até a próxima!!!!!!!!!!!!

Margareth (Margô) disse...

Que delícia de crônica. Sou fã de Clarice e Elaine já peço sua autorização para, em breve postar esta crônica no meu blog.

Fiquei emocionada ao ver o carinho e dedicação da menina para com as galinhas. Lembrei das galinhas que a minha mãe criava. Quando ela ia matar (triste falar assim,né?) uma delas pedia pra gente ficar longe. Dizia que elas demoravam pra morrer porque a gente tinha dó. E como não ter. Cuidamos delas desde que eram "pintinhos"... Tão lindinhos.

Agora Elaine você acredita que eu tenho uma amiga que chama Eponina?
Não teve como e não lembrar dela ao ler o texto.rss