Consultei um médico novo. Há tempos eu não retornava para saber como anda meu astigmatismo. Há tempos uso óculos. Lembro de mim minúscula como um ponto indo ao bebedouro da escola. Duas crianças mais velhas conversando, uma olhou pra mim e comentou: "Ela, tão pivetinha e já usa óculos!" Mas eu não me importei, porque nunca tive vergonha de usá-los e jamais passou pela minha cabeça usar lentes. Se eu sequer imaginar um objeto estranho entrando em olhos, tenho arrepios de agonia. Talvez por isso eu sempre dou muito trabalho as pobrezinhas das assistentes de oftalmologista. Vejo-as vindo em minha direção com colírio numa mão e um lenço de papel na outra. Essa é uma cena de tortura. Sentada na cadeira, transfiro toda minha tensão para as pernas e braços. Tenho pavor, pavor. Ela vai pedir que eu jogue minha cabeça para trás, vai derramar gotas de pimenta que ardem e deixam cegos os olhos. Com as pupilas totalmente dilatadas, oh meu pai, terei que lidar com a incapacidade de enxergar, de ler um bilhete que seja por uma duração dura demais. Dura e dolorosa como um chute numa pedra. Dói não ver as coisas direito. Também o que os olhos não veem o coração sente. Há tanta distorção nesse mundo afora, sem uma visão em perfeito estado fica difícil desviar das coisas e pessoas claramente distorcidas, que podem chegar a distorcer também o nosso caminho.
Então, não suporto colírios, até aqueles anti-sépticos. Tenho olhos sensíveis além do que se considera normal, certeza. Vivo com os olhos aguados; e se percebo o menor sinal de alagamento no olho alheio, os meus rapidamente se transformam em riachos daquele rio revelado pelo outro.
Bem, a consulta; eu sobrevivi. Sai com uma receita dentro da bolsa. Além de uma pequena alteração de grau do olho direito, a ovelha negra, porque o outro leva pouco grau, sai com uma indicação de colírio. Por que eu fui dizer que trabalhava o dia inteiro no computador? Sou sempre obediente com os tratamentos que me passam, mas desta vez não há como seguir direitinho. Pavor, terror de gotas estranhas serenando nos meus olhos. Natural é que elas brotem deles, em seguida, transbordando em forma de empatia, alegria ou tristeza.
Porque janelas e portas abertas não são suficientes pra ver o mundo e as pessoas lá fora, tive que demolir uma das quatro paredes.
domingo, 29 de abril de 2012
quinta-feira, 26 de abril de 2012
Acontece. Aconteceu.
Não é lorota nem invencionice nem viagem na maionese o que dizem os textos pendurados nas tais das três paredes deste blog. Não sei se por falta de imaginação, mas até o momento está fora da minha realidade contar histórias que nunca ocorreram de fato. É, meu amigo, está provada, ao menos para mim, a minha predisposição a transformar pequenos fatos reais em histórias, sejam essas divertidas ou tristes, esquisitas ou normais, frias ou sentimentais até demais.
Para mim, contar histórias por meio de palavras não ditas, escritas, é quase uma terapia, meu pão, meu ioga de cada dia. Quando não tenho sequer uma história em processo de formulação, se movendo da minha cabeça ao coração, fico tão solitária quanto um livro nunca lido esquecido na estante. Beiro à loucura de achar que a história vai bater na minha porta fardada de Correios. É claro que ela não virá assim, eu que devo ir até ela, procurando-a ou encontrando-a ao acaso. E essas histórias, prestes a serem relatadas com pitadas de impressões que deixam em mim, são povoadas de personagens que representam seus próprios papéis rabiscados pela realidade. Afinal, quem sou eu para criar uma pessoa-personagem com claras definições de personalidade e tantas outras complexidades?
Então, por enquanto, eu só consigo descrever situações que aconteceram mesmo, e que sobre as quais, por sorte, minha deficiência de memória ainda não conseguiu prevalecer. Acho que pouco antes da falta de memória vir, desnorteadora como só ela é, eu já tenho anotado aqui as ações, sensações e reações de fatos que realmente importam. Importantes a ponto de não serem tão facilmente descartados pela memória seletiva.
Essa vontade de estar sempre contando alguma história é tão inesgotável, que hoje não é a primeira nem a última noite durante a qual me pergunto sobre a próxima postagem, o próximo texto daqui. Que história vale a pena compartilhar; se vai acrescentar algo duradouro e valioso dentro de alguém que se dispor a ler.
Estava me sentindo vazia agora a pouco, e ainda estou, mas acho que esse desabafo quebrou o galho, - um pouco -. Que mania de inquietude, meu Deus! Seria desespero demais implorar:" Por favor, alguma cena bonita ou feia da vida cotidiana, se revele agora ou não aconteça nunca mesmo!" ?
Para mim, contar histórias por meio de palavras não ditas, escritas, é quase uma terapia, meu pão, meu ioga de cada dia. Quando não tenho sequer uma história em processo de formulação, se movendo da minha cabeça ao coração, fico tão solitária quanto um livro nunca lido esquecido na estante. Beiro à loucura de achar que a história vai bater na minha porta fardada de Correios. É claro que ela não virá assim, eu que devo ir até ela, procurando-a ou encontrando-a ao acaso. E essas histórias, prestes a serem relatadas com pitadas de impressões que deixam em mim, são povoadas de personagens que representam seus próprios papéis rabiscados pela realidade. Afinal, quem sou eu para criar uma pessoa-personagem com claras definições de personalidade e tantas outras complexidades?
Então, por enquanto, eu só consigo descrever situações que aconteceram mesmo, e que sobre as quais, por sorte, minha deficiência de memória ainda não conseguiu prevalecer. Acho que pouco antes da falta de memória vir, desnorteadora como só ela é, eu já tenho anotado aqui as ações, sensações e reações de fatos que realmente importam. Importantes a ponto de não serem tão facilmente descartados pela memória seletiva.
Essa vontade de estar sempre contando alguma história é tão inesgotável, que hoje não é a primeira nem a última noite durante a qual me pergunto sobre a próxima postagem, o próximo texto daqui. Que história vale a pena compartilhar; se vai acrescentar algo duradouro e valioso dentro de alguém que se dispor a ler.
Estava me sentindo vazia agora a pouco, e ainda estou, mas acho que esse desabafo quebrou o galho, - um pouco -. Que mania de inquietude, meu Deus! Seria desespero demais implorar:" Por favor, alguma cena bonita ou feia da vida cotidiana, se revele agora ou não aconteça nunca mesmo!" ?
quinta-feira, 19 de abril de 2012
Criança também copia coisa ruim de adulto
Eu estava no meio da rua, que ainda tinha cheiro de asfalto novo, brincando de jogar vôlei com minha amiga mais velha.
A bola foi rolando pra longe. Vi o menino, que costumava brincar do outro lado da rua, passando. Pedi que pegasse a bola pra gente. Ele trouxe. Aproveitei para convidá-lo pro jogo. Espantei-me com a resposta:
- Eu não! Lá vou jogar com uma aleijada!
Ele se referiu a minha amiga assim. Ela podia dobrar muito pouco as pernas e andava com aparelhos. Isso não a impedia de jogar vôlei comigo.
Fiquei um bom tempo parada, ainda digerindo o que o menino havia dito. Assumi a vergonha que ele não teve. Ela só me aconselhou a não dar bola pro menino, literalmente. Eu aceitei. Afinal, ele podia estar só copiando os pais ou algum outro adulto. Enfim, ele era uma criança. Pode ser que hoje, já adulto, tenha uma melhor opinião formada sobre esse tipo de coisa.
E assim, desde cedo, desde criança, eu soube da existência do preconceito e da sua companheira fiel: a ignorância.
A bola foi rolando pra longe. Vi o menino, que costumava brincar do outro lado da rua, passando. Pedi que pegasse a bola pra gente. Ele trouxe. Aproveitei para convidá-lo pro jogo. Espantei-me com a resposta:
- Eu não! Lá vou jogar com uma aleijada!
Ele se referiu a minha amiga assim. Ela podia dobrar muito pouco as pernas e andava com aparelhos. Isso não a impedia de jogar vôlei comigo.
Fiquei um bom tempo parada, ainda digerindo o que o menino havia dito. Assumi a vergonha que ele não teve. Ela só me aconselhou a não dar bola pro menino, literalmente. Eu aceitei. Afinal, ele podia estar só copiando os pais ou algum outro adulto. Enfim, ele era uma criança. Pode ser que hoje, já adulto, tenha uma melhor opinião formada sobre esse tipo de coisa.
E assim, desde cedo, desde criança, eu soube da existência do preconceito e da sua companheira fiel: a ignorância.
domingo, 15 de abril de 2012
Os honestos pagam pelos desonestos
Eu era criança quando fui abordada por um catador de lixo. Estacionou o carrinho de mão pesado em frente à calçada da minha casa e pediu, humildemente, que eu lhe trouxesse um copo d`água. Lembrei da recomendação de não falar com estranhos, mas sempre achei isso esquisito. Como ignorar um ser humano que se dirige a você como se ele fosse invisível?
Raciocinei rapidamente para que pudesse emitir logo uma resposta, mesmo que hesitante, afinal, eu tinha que responder algo a uma pessoa que poderia estar mesmo com muita sede. Eu já tinha senso do perigo. Então, antes de esboçar alguma reação, fiquei imaginando a cena: eu entrando pra buscar água, deixando o portão aberto, porque eu teria vergonha de fechar a porta na cara dele, com receio de mostrar a minha desconfiança e a pessoa se ofender, o cara se aproveitando da minha inocência para entrar na casa, roubá-la, ou ainda fazer algum mal a minha família.
A minha saída foi dizer que água "de beber" estava em falta. Depois, hesitei e passei a me contradizer, alegando que até tinha água, mas que não estava gelada. Ele rebateu dizendo que não tinha problema. Mas eu não arredaria o pé dali. Não diria a ele que minha mãe havia me proibido de falar com estranhos, o que implicaria também na minha impossibilidade de entregar um copo d`água. Eu fiquei falando justificativas incoerentes, até que ele se convenceu de que eu tinha medo. Medo só, porque a maldade de negar água a alguém não poderia haver numa criança.
Foi embora. Desde esse dia, nunca esqueci do meu jeito de negar água a um pobre catador de lixo. Eu me sentia uma pessoa horrível, mas sabia que tinha minhas razões para tal.
Outro dia, eu estava no canteiro central, em frente à parada de ônibus, quando outro catador de lixo, este mais novo e cheio de energia, embora já com claros sinais de cansaço, se dirigiu a mim sem implorar nem nada:
- Moça, tem alguma moeda para ajudar no meu almoço?
Senti algo apertar dentro de mim. Pude ver a imagem do primeiro catador me implorando por um copo d`água. Era uma projeção trêmula de uma cena real e triste, retrato da miséria do nosso país. Novamente, o senso do perigo e a premonição do cara arrancando minha bolsa, enquanto eu estivesse procurando a carteira. Desta vez, estive mais decidida ao dar resposta. Disse prontamente que não! E o catador demonstrou já estar acostumado com esse tipo de resposta. Conformado, retomou os braços do carrinho, tão exaustos quanto os dele, e continuou no seu caminho sem destino.
Ele foi, e eu fiquei me sentindo mais estática do que nunca diante dos sérios problemas da sociedade. Percebi que agora eu já havia negado não só um copo d`água, como também um almoço a quem tinha fome de verdade. Tudo por medo da violência e da insegurança. Quer dizer, poderiam ser pessoas honestas pedindo minha contribuição, mas que tiveram seus pedidos negados por conta da imagem suja projetada pela maioria desonesta.
Raciocinei rapidamente para que pudesse emitir logo uma resposta, mesmo que hesitante, afinal, eu tinha que responder algo a uma pessoa que poderia estar mesmo com muita sede. Eu já tinha senso do perigo. Então, antes de esboçar alguma reação, fiquei imaginando a cena: eu entrando pra buscar água, deixando o portão aberto, porque eu teria vergonha de fechar a porta na cara dele, com receio de mostrar a minha desconfiança e a pessoa se ofender, o cara se aproveitando da minha inocência para entrar na casa, roubá-la, ou ainda fazer algum mal a minha família.
A minha saída foi dizer que água "de beber" estava em falta. Depois, hesitei e passei a me contradizer, alegando que até tinha água, mas que não estava gelada. Ele rebateu dizendo que não tinha problema. Mas eu não arredaria o pé dali. Não diria a ele que minha mãe havia me proibido de falar com estranhos, o que implicaria também na minha impossibilidade de entregar um copo d`água. Eu fiquei falando justificativas incoerentes, até que ele se convenceu de que eu tinha medo. Medo só, porque a maldade de negar água a alguém não poderia haver numa criança.
Foi embora. Desde esse dia, nunca esqueci do meu jeito de negar água a um pobre catador de lixo. Eu me sentia uma pessoa horrível, mas sabia que tinha minhas razões para tal.
Outro dia, eu estava no canteiro central, em frente à parada de ônibus, quando outro catador de lixo, este mais novo e cheio de energia, embora já com claros sinais de cansaço, se dirigiu a mim sem implorar nem nada:
- Moça, tem alguma moeda para ajudar no meu almoço?
Senti algo apertar dentro de mim. Pude ver a imagem do primeiro catador me implorando por um copo d`água. Era uma projeção trêmula de uma cena real e triste, retrato da miséria do nosso país. Novamente, o senso do perigo e a premonição do cara arrancando minha bolsa, enquanto eu estivesse procurando a carteira. Desta vez, estive mais decidida ao dar resposta. Disse prontamente que não! E o catador demonstrou já estar acostumado com esse tipo de resposta. Conformado, retomou os braços do carrinho, tão exaustos quanto os dele, e continuou no seu caminho sem destino.
Ele foi, e eu fiquei me sentindo mais estática do que nunca diante dos sérios problemas da sociedade. Percebi que agora eu já havia negado não só um copo d`água, como também um almoço a quem tinha fome de verdade. Tudo por medo da violência e da insegurança. Quer dizer, poderiam ser pessoas honestas pedindo minha contribuição, mas que tiveram seus pedidos negados por conta da imagem suja projetada pela maioria desonesta.
sexta-feira, 13 de abril de 2012
Ele dividiu com o outro a única esfiha que ganhou.
De vez em quando, esse pessoal que "olha" o carro da gente, quando paramos em algum canto, nos dá exemplos de humanidade. E melhor ainda; nos lembra que ainda há gente que pensa no outro nesse mundo, mesmo não vivendo a própria vida levada por uma maré boa.
Diante de tantas atrocidades nos noticiários, meu Deus, ainda há gente com um coração que não cabe no peito.
Essa semana fui com o namorado ao Habibi's, e o carinha avisou:
"- Pode deixar que eu olho!"
Certo, teríamos que reservar algumas moedinhas para dá-las na volta. Voltamos. Entregamos moedas e, de quebra, uma esfiha de carne. Na saída, o namorado olha pelo retrovisor, esquece que é motorista por instantes,parando tudo que está fazendo, e comenta muito surpreso:
- Olha, amor, ele dividiu com o outro cara a esfiha!
Também estava surpreendida e com uma sensação boa chegando depressa ao peito. Tive a impressão de que meu coração se derretia e ficava cada vez mais macio. Era o contágio do Bem. Meu coração se contagiou com aquela atitude altruísta. Eu precisava fazer algo. Manifestei isso tudo num pedido:
- Pega aí no pacote mais uma esfiha pra ele, pega!
Diante de tantas atrocidades nos noticiários, meu Deus, ainda há gente com um coração que não cabe no peito.
Essa semana fui com o namorado ao Habibi's, e o carinha avisou:
"- Pode deixar que eu olho!"
Certo, teríamos que reservar algumas moedinhas para dá-las na volta. Voltamos. Entregamos moedas e, de quebra, uma esfiha de carne. Na saída, o namorado olha pelo retrovisor, esquece que é motorista por instantes,parando tudo que está fazendo, e comenta muito surpreso:
- Olha, amor, ele dividiu com o outro cara a esfiha!
Também estava surpreendida e com uma sensação boa chegando depressa ao peito. Tive a impressão de que meu coração se derretia e ficava cada vez mais macio. Era o contágio do Bem. Meu coração se contagiou com aquela atitude altruísta. Eu precisava fazer algo. Manifestei isso tudo num pedido:
- Pega aí no pacote mais uma esfiha pra ele, pega!
domingo, 8 de abril de 2012
Mulher desapegada de certas coisas
Passei uns dias sem publicar aqui. Se você sentir minha falta e perguntar "como vai?", é provável que eu responda assim:
- Estou indo, todo dia levando nas costas uma mudinha de roupas desbotadas, dobradas de qualquer jeito, com um livro no meio.
Causo a impressão em quem me observa ou bate o olho por acaso de que todos os dias estou de mudança.
Desde depois de criança, venho me mudando. Quando menina, eu achava o máximo ganhar roupa nova dos meus pais. Minha mãe dava o toque final fazendo trança bonita nos meus fios lisos, e eu saía alegre e faceira desfilando a novidade. De alguma forma a roupinha nova me proporcionava felicidade.
Hoje não, passei a dar a mínima, quase nula importância a coisas coisificadas (materiais). Este desapego parece se intensificar com o passar do tempo.
Hoje eu mantenho certa distância dos shoppings e suas vitrines com muitas coisas que muita gente não pode comprar, mas que são compradas mesmo assim. Não que eu abomine compras sem necessidade; a economia do país precisa girar, claro, mas é que eu não consigo me encaixar em certas situações, como esta que sempre acontece comigo: estou eu entre os amigos e, como de costume, as mulheres, por afinidade, se aproximam pra bater um papo. Papo esse que acho interessante até o momento em que elas começam a falar com afeto exagerado sobre um vestido ou sapato lindíssimo que viram numa loja aí.
Aí eu olho fixo para a parede e pergunto a ela: “E aí, sou mulher mesmo?” Como não ouço resposta, me esquivo pro lado dos homens e aguardo elas voltarem a um assunto com o qual me identifico.
Acredite ou não, sou mulher que usa um só par de sapato, até o fim, até que a sola se despedace e até depois do ferrinho do salto pequeno surgir, fazendo barulho fora do comum.
Sou mulher que continua carregando uma bolsa que já dá sinais, há muito tempo, de sua incapacidade de ser exibida em público. Sou mulher vaidosa me utilizando da última das últimas gotas de corretivo líquido.
Mas, sabe, isso não faz de mim uma mulher excêntrica, nem "mulher-macho". Isso só demonstra que sou econômica e, principalmente, desapegada de tudo que não dura muito ou de tudo que não for capaz de me arrancar sorrisos ou lágrimas.
- Estou indo, todo dia levando nas costas uma mudinha de roupas desbotadas, dobradas de qualquer jeito, com um livro no meio.
Causo a impressão em quem me observa ou bate o olho por acaso de que todos os dias estou de mudança.
Desde depois de criança, venho me mudando. Quando menina, eu achava o máximo ganhar roupa nova dos meus pais. Minha mãe dava o toque final fazendo trança bonita nos meus fios lisos, e eu saía alegre e faceira desfilando a novidade. De alguma forma a roupinha nova me proporcionava felicidade.
Hoje não, passei a dar a mínima, quase nula importância a coisas coisificadas (materiais). Este desapego parece se intensificar com o passar do tempo.
Hoje eu mantenho certa distância dos shoppings e suas vitrines com muitas coisas que muita gente não pode comprar, mas que são compradas mesmo assim. Não que eu abomine compras sem necessidade; a economia do país precisa girar, claro, mas é que eu não consigo me encaixar em certas situações, como esta que sempre acontece comigo: estou eu entre os amigos e, como de costume, as mulheres, por afinidade, se aproximam pra bater um papo. Papo esse que acho interessante até o momento em que elas começam a falar com afeto exagerado sobre um vestido ou sapato lindíssimo que viram numa loja aí.
Aí eu olho fixo para a parede e pergunto a ela: “E aí, sou mulher mesmo?” Como não ouço resposta, me esquivo pro lado dos homens e aguardo elas voltarem a um assunto com o qual me identifico.
Acredite ou não, sou mulher que usa um só par de sapato, até o fim, até que a sola se despedace e até depois do ferrinho do salto pequeno surgir, fazendo barulho fora do comum.
Sou mulher que continua carregando uma bolsa que já dá sinais, há muito tempo, de sua incapacidade de ser exibida em público. Sou mulher vaidosa me utilizando da última das últimas gotas de corretivo líquido.
Mas, sabe, isso não faz de mim uma mulher excêntrica, nem "mulher-macho". Isso só demonstra que sou econômica e, principalmente, desapegada de tudo que não dura muito ou de tudo que não for capaz de me arrancar sorrisos ou lágrimas.
Escolho a minha Família
Feriado santo. Graças a deus, eu escolhi a família. Não só a família; escolhi ver um grilho caminhando cautelosamente sobre a água azul da piscina; tentei ajudá-lo porque percebi que ele estava querendo sair. A primeira coisa que vi no chão, uma folha morta e seca, usei para tirar ele dali, mas ele escorregou pro lado e eu só consegui molhá-lo mais. Minha mãe vendo minha preocupação, foi ajudar. Fez da sua mão uma concha e tirou-o junto a pequena poça de água com cloro.
Escolhi flagrar, assim, por acaso, um sapo grande camuflado igual pedra na beira da calçada, que estava sendo lavada pelos meus pais. Hoje, estava uma manhã muito quente e logo imaginei que ele só podia estar ali por pura esperteza, só aguardando a água da calçada escorrer sobre sua pele de sapo. Na noite anterior, nosso labrador tentou brincar com o tal sapo, mas só conseguiu fugir meio esquisito, tentando tirar algo do focinho.
Escolhi reunir a família do meu namorado com a minha e finalmente apresentar a eles a casa de sítio tão falada. Escolhi acompanhar minha mãe, enquanto ela apresentava para a minha sogra cada planta enfileirada no quintal comprido. Escolhi também ver as duas famílias interagindo num jogo de sinuca e na mesa durante o almoço.
Escolhi o canto insistente do bem-te-vi como substituto do despertador, e ouvir minha mãe imitando-o em seguida. Logo depois, optei por levantar da rede e ver o céu e o verde lá fora ainda em jejum. Escolhi ouvir meu pai perguntar se eu já tinha tomado café.
Escolhi, junto ao meu irmão, animar as noites de sexta e sábado dos nossos pais. Às 22h, vi que eles já se preparavam pra dormir, então fiz o convite:
- Vamos jogar Ludo, Damas, Sinuca e ouvir música?
E deu certo. Jogamos sinuca ao som de Queen nas alturas. Vimos meu pai finalizar uma jogada de mestre, comemorando sua vitória fazendo um solo do Queen na guitarra imaginária: o taco. Escolhi escutar o comentário feliz da minha mãe:
- Há muito tempo eu não via ele sorrindo assim.
Desta vez, escolhi passar o feriado todo com a minha família de sangue. Meu namorado até tentou me sequestrar, mas deixei ele ir e fiquei. A irmãzinha dele tentou convencer minha mãe de que eu deveria ir embora com eles, mas ouviu como resposta: "A Elaine é minha!"
Eu não queria ir e não fui, porque eu escolhi e vou escolher por mais vezes estar com a minha família de apenas quatro pessoas. Eu entendo que eu e meu irmão somos a fonte da alegria deles. E enquanto eles tiverem com a gente, eu vou doar o máximo do meu amor e da playlist selecionada por mim para animar a festa.
Escolhi flagrar, assim, por acaso, um sapo grande camuflado igual pedra na beira da calçada, que estava sendo lavada pelos meus pais. Hoje, estava uma manhã muito quente e logo imaginei que ele só podia estar ali por pura esperteza, só aguardando a água da calçada escorrer sobre sua pele de sapo. Na noite anterior, nosso labrador tentou brincar com o tal sapo, mas só conseguiu fugir meio esquisito, tentando tirar algo do focinho.
Escolhi reunir a família do meu namorado com a minha e finalmente apresentar a eles a casa de sítio tão falada. Escolhi acompanhar minha mãe, enquanto ela apresentava para a minha sogra cada planta enfileirada no quintal comprido. Escolhi também ver as duas famílias interagindo num jogo de sinuca e na mesa durante o almoço.
Escolhi o canto insistente do bem-te-vi como substituto do despertador, e ouvir minha mãe imitando-o em seguida. Logo depois, optei por levantar da rede e ver o céu e o verde lá fora ainda em jejum. Escolhi ouvir meu pai perguntar se eu já tinha tomado café.
Escolhi, junto ao meu irmão, animar as noites de sexta e sábado dos nossos pais. Às 22h, vi que eles já se preparavam pra dormir, então fiz o convite:
- Vamos jogar Ludo, Damas, Sinuca e ouvir música?
E deu certo. Jogamos sinuca ao som de Queen nas alturas. Vimos meu pai finalizar uma jogada de mestre, comemorando sua vitória fazendo um solo do Queen na guitarra imaginária: o taco. Escolhi escutar o comentário feliz da minha mãe:
- Há muito tempo eu não via ele sorrindo assim.
Desta vez, escolhi passar o feriado todo com a minha família de sangue. Meu namorado até tentou me sequestrar, mas deixei ele ir e fiquei. A irmãzinha dele tentou convencer minha mãe de que eu deveria ir embora com eles, mas ouviu como resposta: "A Elaine é minha!"
Eu não queria ir e não fui, porque eu escolhi e vou escolher por mais vezes estar com a minha família de apenas quatro pessoas. Eu entendo que eu e meu irmão somos a fonte da alegria deles. E enquanto eles tiverem com a gente, eu vou doar o máximo do meu amor e da playlist selecionada por mim para animar a festa.
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